A casa literária do futuro

Afrofuturismo e Sertãopunk: tradição, memória e futuro

Por Kinaya

Fui criada no terreiro do sertão e no asfalto quente da cidade, na água doce do açude de frente da casa da minha vó e na água salgada que corria por baixo das ruas que chegavam até minha casa. Esses dois ambientes que existem no Ceará, existem em outros estados do Nordeste e do Brasil. Mas insistem em nos ver como “pés no chão rachado”. Sim, nós enfrentamos problemas com a seca, e existem programas de acesso à água que nem toda a população que precisa consegue acessar, mas também temos outras coisas para mostrar.

 

Eu Conheço Uzomi (2021)

Quando comecei a escrever minhas histórias ainda na adolescência, foram esses espaços que me inspiraram, mesclados com as tramas de fantasia e ficção científica que eu lia. Daí surgiram histórias de um sertão no futuro, e anos depois veio Eu Conheço Uzomi, a primeira história que publiquei trazendo sertão, cidade, tecnologias da terra e tecnologias futuristas no coração do Ceará.

Aqui no Ceará e com a influência do sertãopunk, nossas histórias nem sempre serão urbanas, mas sim da zona rural, algo que muda completamente a visão do que seria uma ficção científica futurista, já que mesclamos elementos do cyberpunk ou solarpunk, dentre outros, à ambientes não representados no mainstream.

 

O sertãopunk veio para mostrar ao mundo outras possibilidades sobre o nordeste, é um condutor do sentimento de pertença na criação artística que pensa o futuro. Criado por G.G. Diniz, cearense, Alan de Sá e Alec Silva, baianos, o movimento foca nos avanços tecnológicos do nordeste, na sustentabilidade, na política e principalmente na oralidade e imaginário das lendas daqui[nordeste].

SertãoPunk - Histórias de um nordeste do amanhã (2020)

Tem como pilares o solarpunk, o realismo mágico e por ter sido criado por três pessoas negras, o afrofuturismo. Logo, pessoas negras nordestinas acabam transitando entre afrofuturismo e sertãopunk. Trazendo para esse movimento experiências negras nordestinas distintas e nossas tradições que devem continuar vivas e permear nossa memória.

Eu me considero uma afrofuturista não pelo que faço após conhecer o movimento, mas pelo que fiz, por não ter desistido de mim. Não ter desistido de narrar o sertão do futuro ou não necessariamente no futuro, pois o afrofuturismo não é apenas sobre isso, segundo Ytasha Womack: "Afrofuturismo combina elementos de ficção científica, ficção histórica, ficção especulativa, fantasia, afrocentricidade e realismo mágico com crenças não ocidentais. Em alguns casos, é uma total revisão do passado e especulações sobre o futuro repleto de críticas culturais.”

O afrofuturismo possui muitas perspectivas, prefiro usar esse termo e não definições. O motivo pelo qual o movimento é plural se dá justamente pelas diferentes experiências que nós afrikanos em diáspora possuímos; além das heranças que nos restaram de diferentes culturas afrikanas, possuímos nossa ancestralidade cultivada em solo brasileiro. O principal nesse movimento é pensar nos nossos corpos, culturas e ancestralidade existindo no futuro. De fato, muitos conceitos acerca do afrofuturismo trazem uma conexão com a tecnologia e a ancestralidade afrikana, no entanto, a própria simbologia do conceito de tecnologia é ressignificada de modo a contrariar as lógicas modernistas, de visão eurocêntrica, que visam o progresso a partir de uma superação de “passado atrasado". Uma confusão conceitual entre tradição e conservadorismo - termo famoso na contemporaneidade entre as óticas binárias que tomam as discussões sobre o futuro.

Em torno de uma tradição ancestral podem ser situadas as tecnologias não-hightech’s representadas pelo afrofuturismo. Ao contrário dos instrumentos materiais, como nos futuros cibernéticos que vemos na maioria das obras de ficção científica - armas à laser, carros voadores, máquinas do tempo etc... que dominam e são chamarizes para esses universos -, muito embora façam parte também de um futuro afrofuturista, no entanto o afrofuturismo integrado à teorias afrocêntricas entende tecnologia como parte do que compõe o povo preto; sua cultura, religião e determinações sociais são os instrumentos que moldam essas narrativas.

Dito isto, é de praxe, ao termos contato com uma obra afrofuturista nos depararmos com quebras de narrativas tradicionais que trazem referências ao que foi perdido na diáspora - protagonismos negros (obviamente) e dentro disso protagonismos femininos; a quebra da nuclearidade familiar onde o grupo que compõe a trama não necessariamente corresponde a ordem sanguínea ou familiar, mas compreende-se a importância do grupo ou comunidade para a fortaleza dos mesmos -, não a toa, escritores, produtores e dentre outros artistas que vivem o afrofuturismo são pesquisadores sobre o continente.

@afrofuturistacearense

Além da busca do que foi nos roubado no processo da diáspora, o afrofuturismo e o sertãopunk são um grande incentivo para que pensemos nossos corpos nordestinos, ou nos vermos como afrocearense e busquemos construir nossa identidade a partir daqui, ou seja, importar menos conceitos que não nos definem por serem construídos por pessoas, mesmo que negras, que não experienciam situações do cotidiano nordestino, seja nas grandes cidades ou no campo, não sabem nada sobre os processos de embranquecimento que o Ceará passou, por exemplo. Então como vamos nos definir a partir de outres?

É por isso que escrever pensando no nordeste no futuro é afirmar que este lugar é também o lugar que guarda nossos ancestrais e por isso devemos pensar nos nossos corpos existindo aqui por muitos anos, fazendo a nossa cultura perpetuar e ser mais valorizada.

 

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