A casa literária do futuro

#DiáriodeBordo – Crianças nas Sombras
Por Hedjan C.S

Resumindo a história: Foi uma jornada daquelas.

E eu guardo com muito carinho o caderninho onde fiz todas as anotações.

Eu tenho uma longa estrada como escritor de contos. Desde que comecei em 2016, quando cheguei ao trigésimo conto publicado, parei de contar. Sempre foi um tipo de narrativa que eu gostei muito porque se aproxima muito da tradição oral, daquela história ou causo que a gente conta ou escuta quando está indo pra casa no trem, na fila do mercado ou esperando pra ser atendido na UPA e escutar o diagnóstico de “virose”.

Crianças das Sombras é uma narrativa mais longa, uma novela. Esse tempo maior afeta diretamente um elemento fundamental para as histórias que precisa de mais tempo para ser desenvolvidas: o personagem. No conto, a relação com os personagens é diferente. É como ter uma conversa rápida com algum conhecido que você encontra na rua. Na novela não. Esse tipo de narrativa mais longa te faz conviver com mais tempo com os personagens. Enquanto escrevia, eu tive mais tempo para perceber, e para mostrar, as qualidades, os defeitos, os medos desses personagens. Uma história que pretende se aproximar bastante da realidade precisa de personagens reais o suficiente. Quando terminei definitivamente a história, eu sentia que aquelas pessoas que participam da história podiam muito bem estar andando por aí.

Ainda falando sobre personagens, histórias que trabalham com o suspense e o terror precisam de uma coisa: que o leitor se importe com os personagens e com seus destinos. Se você costuma assistir filmes de terror, já deve ter ficado com raiva da mocinha que abre a porta do quarto escuro na mansão amaldiçoada pra ver que barulho de arranhar é aquele. Ou já xingou o casal que aceita passar a noite no acampamento onde mais de 50 pessoas já foram mortas. Quando isso acontece, a reação mais provável ao destino do personagem é “vai morrer pra deixar de ser idiota!”.

Mas histórias desse tipo, histórias que nos fazem roer as unhas, precisam de decisões ruins para acontecerem. Quando entendemos porque determinado personagem toma uma decisão ruim fica mais fácil se questionar se nós, naquela mesma situação, não faríamos a mesma coisa. E pra que isso aconteça, a motivação do personagem deve estar o mais clara possível pra quem está lendo.

Outro ponto de desafio foi o cenário. Como eu tinha assistido o Candyman original recentemente, a imagem do Cabrine Green estava muito presente na minha mente como um lugar ameaçador. Além disso, ainda por conta do filme, tinha lido muitas informações sobre o conjunto de Chicago e sobre as políticas habitacionais dos EUA e daqui do Brasil, especialmente os dois movimentos que aconteceram no Rio de Janeiro e que impulsionaram a criação de comunidades e de conjuntos habitacionais: o Bota Abaixo de Pereira Passos no começo do século XX e as iniciativas do Governador Carlos Lacerda lá por meados dos anos 1960-1970.

Em resumo, moradores com menor poder aquisitivo eram deslocados das regiões centrais para regiões periféricas da cidade. Prédios e Conjuntos Habitacionais eram construídos acompanhados cheios de promessas dos governantes e ao longo dos anos eram abandonados à própria sorte. O Edifício Lassance não existe, mas poderia existir. Ele tem os mesmos problemas de vários outros que existem pelo Rio de Janeiro, pelo Brasil e pelo mundo.

(Arte de Amora Moreira)

Sobre o Lassance, eu também quis utilizar o conceito de Cidade Partida. Esse é um termo usado pela sociologia para definir a cidade do Rio de Janeiro. Enquanto de um lado temos os bairros ricos do Centro e Zona Sul com segurança, serviços essenciais, transporte público, comércio variado e empregos, a Zona Norte, Zona Oeste e as comunidades dos morros sofrem com abandono, violência, desemprego e presença do estado apenas para atuar como força armada. Esse conceito ficou bastante em evidência na década de 1980, graças a um livro do jornalista Zuenir Ventura, quando se dizia que a cidade do Rio na verdade eram duas.

A situação não melhorou, apenas se tornou mais crítica. Em vez de duas cidades diferentes, hoje temos três, quatro, cinco ou mais cidades dentro do Rio de Janeiro. Existem territórios dentro da Zona Norte, por exemplo, que o morador da própria região tem medo de ir. Esse medo também alimenta histórias, reais ou só aumentadas, que fazem com que mais pessoas passem a ter medo de determinado lugar.

Com o Lassance acontece isso. Dandara e Moara mora, respectivamente, na Pavuna e em Anchieta, dois bairros que realmente existem. Moara tem medo de ir até a região da Praça da Mangueira, bairro fictício onde fica o também fictício Lassance, por conta das histórias que escuta e por causa de sua própria experiência com a violência urbana.

Eu não sei se ninguém percebeu ou se ninguém quis falar, mas eu tentei usar a criminalidade que atua no Lassance e sua estrutura como uma parábola para o momento político em que vivemos.

Spoilers aqui...

Os moradores acreditam que existe uma quadrilha bem armada, organizada e numerosa dominando o prédio. Acreditam por causa das histórias que escutam, do boato, da fakenews. No fim das contas, apenas um homem solitário e patético se proclama o chefe enquanto aqueles que estão sob seu comando, dois garotos assustados e cansado, batem cabeça sem ter exatamente certeza do que devem fazer.

Fim dos spoilers.

O livro começaria de uma maneira totalmente diferente, com um prólogo que acabou sendo retirado totalmente. Quando já estava no meio da história, durante uma pausa para descansar, resolvi assistir a um filme antigo. O filme era O Nevoeiro, de John Carpenter. O filme começa com um homem idoso contando uma história de fantasmas para um grupo de crianças. O cenário é uma praia e eles estão cercados pelo escuro. Parei na metade do filme e só fui terminar de assistir muitos meses depois, porque esse trecho ficava voltando para a minha cabeça toda hora. Eu ficava imaginando um grupo de crianças ouvindo a história da Criança na Praça da Mangueira depois da escola. Depois que escrevi essa cena, gostei tanto dela que achei que ela merecia abrir o livro.

E, pra terminar, eu pensei em muitos detalhes que acabaram não entrando no livro. São informações legais que eu pensei e que escrevi, mas que prejudicariam o ritmo rápido da história. Além disso, algumas funcionariam melhor em outras mídias (como documentários, fotos, etc). Sendo assim, todo esse material foi preparado na forma de uma narrativa transmídia. Quem já leu o livro deve ter visto as anotações nas bordas das páginas. Para quem ainda não leu... Mistério...

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