A casa literária do futuro

#DiariodeBordo “Os Fantasmas da Rua Sete”

Às minhas mães, de coração.

Por: Danilo Celso

 

 

 

Eu devia ter uns seis anos na primeira vez que ouvi uma tia brigar com uns bem-te-vis que cantavam na janela por medo de um suposto mau presságio trazido por eles. Não por coincidência, foi semanas após a morte de minha avó, mãe de minha mãe e também desta tia. Já bastava de tristeza na família, pelo menos por aquele ano. Também é por influência desta tia, que tive contato com a religião umbanda e todos seus belíssimos mistérios, com a estranha paz que me trazia o terreiro - ou casa - de Dona Sônia, amiga de minha tia e isso talvez tenha me trazido todo o interesse que sempre tive pelos mistérios e pelo oculto, que nunca antes havia relacionado com uma ancestralidade perdida como tenho feito por estes tempos.

 

Esta virada epistemológica, é o que tenho considerado como o passo mais importante de minha curta trajetória não só como escritor, mas como pessoa, como profissional. Me inquieta profundamente estes mistérios, estas “crendices” - sei o quanto é perigoso dizer assim, pois esta palavra carrega um pesado fardo colonial e preconceituoso que esvazia o significado de muitas destas manifestações culturais que são importantes para muitos povos. Vivo numa eterna corda bamba entre as “crendices” e a razão dos ensinamentos científicos. É que estas “crendices” parecem ter muito mais zelo pelo humano, tem muito mais conhecimento da alma do que os ensinamentos científicos, que de maneira nenhuma desprezo, ainda mais em tempos como estes (eu mesmo me considero um cientista). Existe uma razão estranha no meio de tanta crença. São elas que me põem em órbita quando eu quase escapo de mim mesmo. São os conhecimentos científicos que me tiram de órbita, pois apesar do caráter exato e que não admite erros da ciência, a realidade é tão oculta quanto o profundo do universo. Talvez essa briga seja eternamente justa em uma realidade em que nunca iremos descobrir todas as respostas, pois as respostas geram ainda mais perguntas.

Assim nasceu “Os Fantasmas da Rua Sete”, da mistura entre estas coisas e histórias que me põe e me tiram de órbita. O belo destas histórias não é só o teor humano que existe por trás delas, é também a forma misteriosa com a qual elas são passadas de geração para geração, contadas ou cantadas. No livro, muito dos valores e do imaginário do personagem principal advém da relação afetuosa e preenchida de conhecimento ancestral que ele teve com sua avó e do conhecimento científico trazido por sua mãe, que é uma importante empresária e cientista de uma das maiores empresas de tecnologia de sua época. É sabido a força da oralidade na construção do imaginário cultural do brasileiro, mas os cânticos são o retrato da alma de nossos antepassados e por isso decidi iniciar o livro dizendo “Cantavam os antigos (...)” e logo após conto histórias trazidas por estes cânticos dos antigos sobre suas dores - como diria Clara Nunes “E de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo dessa terra  quando pode cantar, canta de dor - e que derivam em uma manifestação cultural típica da cultura negra brasileira, o boi-bumbá.

 

Foi na cidade de Belmonte, no litoral sul da Bahia, que eu tive contato com a procissão do Boi-Duro, uma manifestação regional do boi-bumbá. É uma comemoração do dia de reis, que ocorre durante o mês de janeiro em vários pontos da cidade, onde competem os blocos para depois ser premiado o melhor desfile do Boi-Duro do ano. Para quem observa sem realmente se interessar por todo o misticismo que existe por traz desta celebração parece apenas uma festa muito estranha, com homens mascarados, pessoas vestidas de bois de palha que soltam fumaça, que saltam chacoalhando as franjas, e no final aparece um homem que atira no boi, que renasce depois com a benção de uma criança. Depois de alguns quarteirões toda a encenação recomeça. Me disseram que o Boi-Duro é uma velha procissão que encena uma lenda do vale do Rio Jequitinhonha, que deságua no mar na altura da cidade de Belmonte.

 

Manifestações como o Boi-Duro são herança dos negros escravizados e do epistemicídio que buscou eliminar qualquer traço cultural destas pessoas - e que persiste ainda hoje em diversas situações e contextos - alienando-as de seus próprios costumes, crenças, valores. Muitas destas características permaneceram por meio do processo conhecido como sincretismo, que também originou o umbanda, a religião de minha tia. Reconhecendo a importância de não negar ou romantizar este processo traumático e doloroso, mas reconhecendo-o como uma realidade que moldou a forma como nós negros experimentamos o mundo hoje e que permitiu a sobrevivência de muito da nossa cultura, penso que é impossível distanciar estas manifestações sincretizadas - e também estes cânticos que carregam muito conhecimento - da imaginação de um afrofuturismo. Mas se o afrofuturismo não é apenas esta busca pelo passado, mas também a ressignificação do presente e para a construção do futuro, então para mim, ele é justamente a mistura destas coisas que me tiram e põem em órbita.

 

O livro “Os Fantasmas da Rua Sete” é para mim uma síntese sobre tudo o que tenho estudado sobre afrofuturismo, uma intensa pesquisa sobre matrizes culturais africanas em conjunto a este processo de virada epistemológica que tenho vivido e da ressignificação das minhas vivências. Se para a construção do afrofuturismo passa por esta busca do ficou perdido no passado, eu tenho buscado as coisas que primeiro me trouxeram noções sobre o que sou eu, enquanto homem negro e brasileiro. Se estas coisas são o cheiro das velas do terreno de Dona Sônia, a paz das rezas das mães de santo - ou mesmo o “incômodo” canto do bem-te-vi - assim como Bafana faria, agradeço então às minhas mães, de todo o coração.

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